A ideia de romper fronteiras entre o mundo digital e o físico permeia
enredos de ficção científica há décadas. Mas e se o mundo real começar,
de verdade, a ficar mais virtual? É uma façanha que, parece, o bitcoin
(BTC) tem conseguido levar adiante, mesmo após as turbulências dos
últimos meses, que colocam em xeque o futuro do dinheiro virtual.
O Brasil já conta com 51 estabelecimentos, entre bares, pousadas,
restaurantes, lojas e até uma clínica de cirurgia plástica, que, além de
reais, recebem também dinheiro virtual. Em um mês esse número quase
dobrou: em fevereiro, segundo o serviço CoinMap, que mapeia os lugares
nos quais se pode usar BTC como pagamento, o país contava com 27 pontos.
Na América Latina, o Brasil não é o maior mercado. A Argentina exibe
107 estabelecimentos. E, no mundo todo, já são 3,6 mil, de acordo com o
CoinMap, o que representa um crescimento de 38% em relação a fevereiro.
De acordo com estimativas da "exchange" brasileira BitInvest, que faz
a intermediação de troca de reais por bitcoins, o mercado doméstico já
movimenta R$ 20 milhões por mês, em cerca de 400 mil transações. "A
maior parte dos negócios se concentra nas exchanges, mas há ainda
negociações diretas entre usuários", afirma Flavio Prippas, sócio da
BitInvest, que tem no currículo passagem pelo banco americano JP Morgan,
como diretor de tecnologia. Ainda concentrado, o mercado brasileiro conta com três principais
exchanges. A mais antiga do país, o Mercado Bitcoin, existe desde 2011 e
movimenta sozinha R$ 8 milhões por mês, segundo Rodrigo Batista, sócio
da casa de câmbio digital e ex-executivo do banco americano Morgan
Stanley. "A imensa maioria dos clientes faz investimentos pequenos,
entre R$ 500 e R$ 1.000", diz.
O crescimento do interesse pelo bitcoin ganhou impulso,
principalmente, após declaração do ex-presidente do Federal Reserve
(Fed, o banco central americano), Ben Bernanke, que foi vista pelo
mercado como uma espécie de benção cautelosa ao sistema. Ainda no cargo,
Bernanke chamou as "moedas virtuais", como classificou essas inovações,
de "uma promessa de longo prazo".
A opinião do comandante da autoridade monetária dos EUA, divulgada em
novembro de 2013, deflagrou uma espécie de corrida especulativa ao ouro
digital, que levou o bitcoin a acumular valorização de mais de 5.000%
no ano passado.
A alta alavancada pela especulação colocou os bitcoins no radar de
investidores e de um número crescente de empresas, que passaram a
aceitar o dinheiro virtual como alternativa de recebimento por serviços
ou produtos. Especialistas, no entanto, alertam para os riscos embutidos
nesse tipo de operação. "Ninguém consegue dizer qual valor real o
bitcoin vai ter no futuro. Não há nenhuma base", resume o professor de
finanças do Insper, Michel Viriato.
A visibilidade acabou expondo a face perigosa da moeda digital, que
não tem supervisão de nenhum banco central ou ainda distribuição
controlada. A valorização atraiu a atenção de cyber criminosos, que
levaram ao fechamento em 25 de fevereiro da maior bolsa de negociações
mundial de bitcoins, a japonesa MTGox, que gerou prejuízo de quase US$
500 milhões e a perda de 750 mil bitcoins. Outro baque veio com o
encerramento da canadense Flexcoin, em 4 de março, após um roubo de 896
bitcoins ou US$ 600 mil.
Os problemas trouxeram à tona os riscos de um mercado não regulado,
sujeito a manipulação e com brechas de segurança, ameaçando o futuro do
dinheiro virtual. Autoridades no mundo todo, inclusive o banco central
brasileiro, já alertaram que estão de olho na evolução do uso dessas
moedas, apesar de minimizarem o risco que representam ao sistema
financeiro (
leia mais na página D3). Ainda assim, o Bitcoin
continua a ganhar adeptos no mundo real. E não apenas pessoas físicas,
mas cada vez mais empresas passam a usar a moeda digital.
Desde janeiro, a loja paulistana Pallas, que vende roupas íntimas e
de ginástica femininas, recebe pagamentos em bitcoins. Segundo Abelardo
Bias Sobrinho, sócio do empreendimento, a opção pela moeda digital
surgiu por dois motivos distintos. "Com o bitcoin podemos escapar das
taxas de bancos e das operadoras de cartão de crédito e débito. Também
tem a questão da segurança, porque somos um ponto de rua e já fomos
assaltados, e dinheiro em papel é mais fácil ser roubado", afirma.
Apesar de oferecer há três meses a opção de pagamento, a loja ainda
não recebeu nenhum pagamento com o dinheiro virtual. "Temos recebido
muitas consultas, mas quem tem carteira com bitcoins prefere segurar de
olho na valorização nos últimos meses", diz o sócio da Pallas.
Um dos primeiros estabelecimentos a aceitar bitcoins no país, o bar e
oficina de bicicletas Las Magrelas, de São Paulo, já recebeu sete
pagamentos na moeda digital. "A gente começou a aceitar a moeda digital
em junho do ano passado. Foi uma maneira de driblar a taxação das
instituições financeiras e também de atrair um público mais ligado à
tecnologia", afirma Rafael Rodo, sócio do empreendimento.
A pousada Kyrios, em São Sebastião, no litoral norte paulista, já
conta um ano desde que passou a aceitar o bitcoin. De acordo com Maria
Fátima Regina de Moura, dona da hospedagem, "as consultas para estadias
com pagamento em moeda digital aumentaram muito a partir do fim do ano
passado". Hoje representam 5% dos pedidos por informações de reservas.
Como a volatilidade do bitcoin é muito alta, a pousada optou por
converter o valor da diária em dólares e depois em BTC, de acordo com a
cotação do dia.
Novata no território das moedas digitais, a clínica estética Renova
Pele, de Jundiaí, no interior de São Paulo, aderiu ao bitcoin há pouco
mais de duas semanas. Paulo Martin, 40 anos, cirurgião plástico
associado ao estabelecimento, conta que a valorização do dinheiro
virtual no fim de 2013 foi decisiva para sua aceitação como meio de
pagamento. "A moeda já subiu muito de valor e esperamos que tenha
atingido um patamar mais sólido para as pessoas poderem usar como forma
de pagamento", diz. Segundo o profissional, qualquer serviço da clínica
pode ser pago com bitcoin, até mesmo cirurgias plásticas e aplicações de
botox.
A ligação de Martin com a moeda virtual vai além do lado
profissional. "Estou comprando e guardando bitcoins numa carteira
virtual como investimento", conta o cirurgião, que começou a aplicar em
BTC em novembro. "Já consegui um bom ganho", diz, sem revelar a
valorização.
Embora a possibilidade de valorização seja sedutora, há usuários que
veem outros atrativos na moeda digital. O empresário Marco Gomes, 27
anos, declara-se um entusiasta do bitcoin. "Já fiz micropagamento de
conteúdo de centavos de dólar em sites americanos e até doações para
ONGs internacionais sem pagar nenhuma taxa de cartão", conta. Embora
reconheça a possibilidade de ganho com valorização, Gomes não recomenda a
aquisição de bitcoins como investimento. "Para mim o valor está no uso
em transferências internacionais, como meio de pagamento e
micropagamentos."
Já o professor de inglês Leandro Torricelli, de 28 anos, que montou
uma carteira de bitcoins no fim de 2013, tem uma meta específica para o
uso da moeda digital. "Quero guardar para uma viagem à Europa porque o
exterior tem muitos lugares que aceitam. Para quem gosta de viajar é
ótimo, porque não precisar fazer câmbio e pode pagar diretamente sem ter
de converter o dinheiro", diz.